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Dor (2018) 26
lhe apresenta, mas é também uma realidade que vai ao encontro dos pensamentos, das fantasias ou das inquietações daquele que a olha. São os pensamentos que encontram aquela realidade que os olhos veem, mas que também são en- contrados por ela e que, através dela, se encon- tram a si próprios. A fotografia — tal como outras formas de relação artística com a realidade — permite a criação de um espaço intermediário entre o dentro e o fora, entre o avesso e o direi- to, um lugar gerador das metáforas que as foto- grafias materializam.
As fotografias que fazem parte da série “O avesso e o direito”, exposta durante as 26.as Jornadas da Dor do Hospital Garcia de Orta, ainda antes de se materializarem já eram metá- foras portadoras de sentidos múltiplos. «No pro- cesso de construção desta exposição apercebi- -me de que a relação com os avessos e, em particular, com os avessos de nós é um dos temas centrais na minha fotografia. As metáfo- ras que a habitam ligam e re-ligam repetidamen- te o dentro e o fora.» Como se nestas fotos as pessoas ficassem com os avessos de fora: elas com os seus avessos escancarados perante o nosso olhar, mas ao mesmo tempo observando atentamente os avessos de quem para elas olha. Como se as fotografias nos mostrassem – fora – aquilo que – de dentro – normalmente só conseguimos vagamente imaginar. Um pou- co o que psicoterapeuticamente tentamos fazer: entender o avesso do direito que nos é dado a observar.
No texto da folha de sala que acompanhou esta exposição podia ler-se o seguinte:
«Mostramo-nos pelo direito, mas funcionamos pelo avesso. O avesso é o verso, o reverso, o inverso, o adverso, a outra metade das coisas,
o não visível que faz o direito funcionar, o que não se vendo existe, ainda que tantas vezes não o reconheçamos. É onde ficamos quando algo nos vira do avesso. Mas é também onde existi- mos enquanto sonhamos, o lugar em que as sombras que persistem do que é vivido se en- contram com aquelas que de outros tempos aguardavam e entre elas tecem das coisas as ligações de onde as palavras nascem. [...] O conjunto de fotografias aqui exposto constitui uma reflexão fotográfica sobre diversas facetas da relação com os avessos de nós — com o interior que oculta e revela, com os reflexos em que simultaneamente nos revemos e nos escon- demos, com o outro em nós, o inquietante duplo, ao mesmo tempo estranho e familiar... O encon- tro desencontrado com o que não se deixa ver diretamente».
Julgo ser neste «encontro [tantas vezes] de- sencontrado com [um sofrimento] que não se deixa ver diretamente» que consiste uma parte substancial da relação de qualquer técnico de saúde com o doente oncológico ou com dor crónica; o encontro com o sofrimento daquele que se confronta com uma doença grave, que o deixa virado do avesso, com os avessos escan- carados, em contacto íntimo com avessos de si de que sempre tinha conseguido proteger-se; um sofrimento que é transmitido a quem dele cuida, na forma de apelo, através de uma lin- guagem tantas vezes desencontrada, mas que anseia por ter quem a encontre.
Bibliografia
1. Gageiro E, Lobo Antunes A. Olhares. Edição de Autor. 1998.
2. Augé M. Non-lieux — Introduction à une anthropologie de la surmo-
dernité. Éditions du Seuil. 1992.
3. Attia K. Réfléchir la mémoire (vídeo). 2016.
4. Winnicott D. Playing and reality. Tavistock Publications. 1971.
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