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Dor (2018) 26
O Avesso e o Direito no Doente Oncológico
João Santana Lopes
Talvez as metáforas sejam das poucas formas a que temos acesso para dizermos o indizível. Na verdade, representar o sofrimento, seja este físico ou psíquico, é sempre dar-lhe uma roupa- gem metafórica e assim possibilitar que se torne personagem dos sonhos e dos pesadelos que são encenados no palco da nossa imaginação — quer estejamos acordados ou a dormir. Quan- do ainda não têm um nome, uma forma ou uma representação, o medo, o sofrimento ou a dor que acompanham a condição de se estar doen- te tornam-se mais difíceis de suportar. Se não temos quem nos ajude a criar imagens ou histó- rias em que caibam a dor e o medo que acom- panham as experiências particularmente pe- nosas e indizíveis, corremos o risco de nos tornarmos colecionadores solitários de vivências dolorosas sem abrigo. Tentarei aqui fazer um percurso por esta função geradora de metáfo- ras, centrando-me principalmente na relação com as imagens e em particular com as imagens fotográficas.
António Lobo Antunes1, num texto para o livro Olhares do fotógrafo Eduardo Gageiro1, escrevia assim sobre os fotógrafos da sua infância: «Tive sempre tanto medo dos fotógrafos: ordenam-nos que fiquemos quietos e principiam a examinar- -nos, a sondar-nos, a aproximar-se, a afastar-se, semiescondidos naquela horrível órbita mecâni- ca e míope que pestaneja de tempos a tempos a sua pálpebra circular, pedem-nos que sejamos naturais enquanto nos espiam só aparelho e mãos (um segundo aparelho, pendurado ao pescoço, fita-nos a baloiçar por alturas da bar- riga) e nisto um estalido devora-nos, a tal órbita mecânica engole-nos de súbito, passamos, como os mortos, para um quadrado de papel onde não somos nós continuando a ser nós, onde nos tornamos uma cara sem tempo ou um sorriso que não pertence a ninguém. [...] (eu não sorrio assim) [...]».
Também as técnicas imagiológicas, usadas para sondar e revelar as entranhas de quem se presume estar doente, não deixam, ao seu modo, de produzirem fotografias dos nossos avessos, de partes de nós nas quais dificilmen- te nos reconhecemos. É sempre um outro aque- le que está representado na imagem e que o médico insiste em dizer que somos nós (tal como dizia Lobo Antunes sobre a sua relação com os fotógrafos)1. Se o que a imagem mostrar for uma parte doente de nós, ainda mais é “um outro” aquele que nos dizem sermos nós. Uma parte de nós que outra parte de nós recusa aceitar que faça parte de si.
É a dor e o sofrimento físico que muitas vezes vêm dar uma realidade palpável àquele “outro” da fotografia que o médico dizia que éramos nós e a todos os medos que esse outro em si encer- ra. Porque, tal como os fotógrafos da infância de Lobo Antunes, também aqueles que sondam e revelam os nossos avessos nos deixam com medo, com muito medo, aterrados. E nesses momentos, tal como Lobo Antunes1, todos volta- mos à infância. Doentes, perdidos nesse não- -lugar que é um hospital e perante adultos de bata branca, todos nos sentimos crianças des- protegidas chamando em silêncio por uma mãe que nos apazigue o medo que temos de sofrer e de morrer.
Esta noção de “não-lugar” foi roubada aos trabalhos antropológicos de Marc Augé2, que, de uma forma particularmente sugestiva, nos ajudam a repensar o que designamos por huma- nização dos cuidados de saúde. Para este autor, o que define um lugar é a possibilidade de lhe concedermos uma identidade e uma história e de com ele estabelecermos uma relação. Neste sentido, os espaços hospitalares arriscam-se a ser o que Augé2 designou por “não-lugares”. Numa instituição hospitalar, a identidade do doente é-lhe inicialmente conferida pela sua cir- cunstância de doente e as relações que estabe- lece, tal como os procedimentos terapêuticos a que é submetido, são essencialmente funcionais e asséticas. Mas, se as equipas hospitalares forem capazes de humanizar suficientemente o tratamento e a relação, aquele que antes era apenas um doente passa a ser sentido e a sen- tir-se como uma pessoa, como “aquela pessoa”, alguém com nome, que começa a acreditar que tem uma existência dentro daqueles que dela
Psicólogo Clínico
Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Unidade de Psicologia Clínica
Coimbra
22 E-mail: jsantanalopes@gmail.com
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