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cuidam; aquele espaço e aqueles que assumem a função de cuidadores passam também eles a ter uma identidade própria, a relação com eles particulariza-se e passam a fazer parte da his- tória daquele que por ter adoecido os procurou. O espaço hospitalar passa assim de “não-lugar” a “lugar” e as experiências dolorosas, bem como as angústias que as acompanham, passam a ter condições para deixarem de existir no “não- lugar” da negação e passarem a ter, dentro daquele que as vive, um “lugar” que possam habitar.
O confronto doloroso com o que fere, o que traumatiza — a realidade da doença ou de um dano físico grave — e a necessidade de o repa- rar, têm sido objeto do trabalho de Kader Attia3. No seu filme “Réfléchir la mémoire”, este artista trabalha sobre o fenómeno do membro fantasma em pessoas a quem um braço ou uma perna tinham sido anteriormente amputados. Elas eram colocadas junto de um espelho posicionado de forma a refletir a parte do corpo não amputada, enquanto escondia a outra metade. Ao olharmos para o conjunto formado pela metade do corpo visível e pelo seu reflexo no espelho, temos a ilusão de ver um corpo completo, sem qualquer amputação. Estas pessoas, quando colocadas neste dispositivo, onde no lugar do membro am- putado aparece no reflexo do membro que per- manece, têm a possibilidade de verem o seu corpo completo. O espelho era posteriormente retirado e tornava-se evidente o impacto integra- dor desta experiência, no sentido da promoção de um maior reconhecimento pelo próprio sujei- to da realidade da perda do seu membro. A relação com estas imagens refletidas, que dão a ilusão de completarem um corpo entretanto tornado incompleto, constitui uma metáfora do processo de reparação/negação em curso, pois reparar o dano sofrido parece ser, num primeiro momento, restabelecer magicamente o estado anterior à doença ou ao acidente, só mais tarde se tornando possível integrar a nova realidade corporal.
Recordo um depoimento dado por Eduardo Nery, em que o pintor colocava estas mesmas questões da perda e da reparação, mas agora em relação à morte. Referia-se assim aos moti- vos pelos quais passou oito anos sem pintar: «A morte de um irmão foi um grande desgosto e um choque. Entrei numa situação de antipintura. Co- meço a destruir parcialmente as pinturas que fazia. Na lareira do meu atelier queimava parcial- mente as obras. Para mim aquilo era pintar com o fogo. Era destruição, mas também era regene- ração. Senti que fizera um atentado à pintura. A seguir há um vazio, um longo hiato. Quando pensava em pintar, não sabia o que fazer. Tinha ido longe demais na destruição da pintura ante- rior. Continuava a ser um pintor na teoria, mas na prática estava num impasse. Faço uma via- gem dentro de mim próprio. Ao voltar aos pri- mórdios da minha obra de pintor encontrei uma
saída. Retomei a pintura interrompida. Voltei à pintura como havia começado: com gestos rápidos e espontâneos, libertadores. Continuei a minha caminhada como pintor». Também este processo destrutivo/criativo na relação de Eduardo Nery com a sua própria pintura consti- tuiu aqui uma verdadeira metáfora do que ele internamente estaria a viver.
Um dia, questionado sobre esta fotografia (Fig. 1) dei a seguinte resposta: «Esta é a foto- grafia que eu gosto de fazer. Concede uma poé- tica à realidade, mas ao mesmo tempo coloca a realidade no centro da poética que a reinventa – aquele limpa-para-brisas fica ali a matar! Pen- so que a vida, para ser vivível, não pode andar muito longe disto». Esta expressão faz-me recor- dar o filme “A vida é bela” de Roberto Benigni. É um filme que nos fala justamente sobre como tornar a vida vivível nos momentos em que ela comporta uma violência que ultrapassa a nossa capacidade de a suportar. É uma reflexão sobre a possibilidade de criar relações, metáforas, nar- rativas, que alberguem experiências tão difíceis de integrar como a chegada de uma criança a um campo de concentração nazi, mas que tam- bém poderia ser a perda de um membro — como nos apresenta Kader Attia3 — ou de um irmão — como aconteceu a Eduardo Nery — ou ainda uma dor física que se instala e nos condi- ciona a vida ou o confronto com um diagnóstico de doença oncológica.
Também a relação com a fotografia é coloca-
da tantas vezes ao serviço desta necessidade
de tornar a vida vivível — uma necessidade de sobrevivência, de re-criação de um sentido para
a experiência. Donald Winnicott4 afirmava que o
mundo, tal como se apresenta, é destituído de qualquer significado para o ser humano a menos
que seja tanto criado quanto descoberto. Neste
sentido, fotografia é uma espécie de parque in-
fantil em que é possível brincar com um olhar
que lê a realidade que os olhos veem, ao mesmo
tempo que recria essa mesma realidade. É um
olhar que vai ao encontro da realidade que se 23
J. Santana Lopes: O Avesso e o Direito no Doente Oncológico
  Figura 1.
 DOR
















































































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