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dado o nome de síndrome de Déjerine Roussy ou dor talâmica1. Mais tarde, em 1911, Head e Holmes apresentaram a teoria da desinibição, onde lesões vasculares extratalâmicas, localiza- das ao longo das vias espinotalâmica e talamo- cortical, também poderiam causar dor, através da sobreativação compensatória do tálamo. A partir desta altura começou a ser adotada de- signação de dor central após acidente vascular
2,3
nica, resultante de lesão cerebrovascular isqué- mica ou hemorrágica do sistema nervoso soma- tossensorial central4. Apesar do número crescente de eventos vasculares cerebrais, a DNC-AVC é subestimada, tendo forte impacto na qualidade de vida dos doentes5. A variabilidade de sintomas, as comorbilidades e os défices sequelares na cognição e comunicação dificul- tam o seu diagnóstico6.
Objetivo
Neste artigo, apresentamos uma revisão bi- bliográfica da DNC-AVC e a caraterização dos doentes com esta patologia avaliados no Centro Multidisciplinar de Dor do Hospital Garcia de Orta (CMD-HGO), no período de um ano – janei- ro a dezembro de 2017.
Métodos
Estudo retrospetivo de doentes com DNC- -AVC, avaliados entre janeiro e dezembro de 2017, com caraterização demográfica e clínica.
Epidemiologia
O AVC constitui, a nível global, a segunda principal causa de morte. Em Portugal, a inci- dência anual estimada é de 15.208 eventos por ano7,8.
Entre 1 a 12% dos doentes com AVC apresen- tam dor neuropática central após o evento e cerca de 40% apresentam outras síndromes do- lorosas4,9.
Os fatores de risco para DNC-AVCA incluem idade jovem (> 18 e < 65 anos), sexo feminino, gravidade do evento vascular, presença de es- pasticidade, diabetes mellitus, alterações da sensibilidade, depressão e dor prévios ao even- to vascular10. Porém, parece não haver correla- ção entre a área afetada, a lateralidade, a loca- lização da lesão, o grau de diminuição da sensibilidade, a idade e o sexo com a qualidade e/ou intensidade da dor11.
Diagnóstico
Nos doentes com AVC, a distinção entre dor neuropática e dor nociceptiva representa um de- safio clínico, dado que muitos doentes apresen- tam vários tipos de dor. Corresponde a um diag- nóstico clínico, de exclusão. Na tentativa de facilitar e homogeneizar o diagnóstico de DNC-
-AVC, foi publicada em 2009 uma proposta de critérios de diagnóstico que inclui critérios obri- gatórios e critérios de suporte12. Os critérios obrigatórios incluem dor na área corporal corres- pondente à lesão do sistema nervoso central (SNC); história sugestiva de AVC; início de dor após AVC; confirmação de lesão vascular por exames imagiológicos e sinais negativos e/ou positivos correspondentes à área corporal de lesão do SNC. Devem ser excluídas outras cau- sas de dor, nomeadamente dor nociceptiva ou dor neuropática periférica. Os critérios de supor- te incluem inexistência de associação da dor com o movimento, com inflamação ou dano local tecidular; descritores de dor como queimadura, dor fria, choque elétrico, pressão, picadas de agulhas; presença de alodinia ou disestesia ao toque. De acordo com a presença de critérios obrigatórios e de suporte, é possível classificar o diagnóstico de DNC-AVC como possível, pro- vável ou definitivo (Tabela 1).
Fisiopatologia
A fisiopatologia da DNC-AVC é complexa e ainda não se encontra totalmente compreendi- da. Desconhece-se a razão do desenvolvimento desta síndrome em apenas alguns doentes com lesões cerebrais e clínica idênticas. A DNC-AVC pode ocorrer após lesão isquémica ou hemorrá- gica em qualquer área somatossensorial do SNC, sendo mais frequente após lesões no nú- cleo ventral posterior do tálamo e da região opérculo-insular13,14.
Os processos de desaferenciação, neuroplas- ticidade e mecanismos de hiperexcitabilidade neuronal parecem ter um papel no desenvolvi-
12 mento de DNC-AVC .
Clínica
A dor após AVC pode estar direta ou indireta- mente relacionada com o evento vascular cere- bral e apresentar-se com caraterísticas nocicep- tivas, neuropáticas ou mistas.
Dor neuropática central
Tal como outros tipos de dor neuropática, a DNC-AVC é idiossincrática e tem frequente- mente um início tardio relativamente à causa. A maioria dos casos inicia-se imediatamente após o AVC ou nos primeiros três meses. É geralmen- te descrita como dor espontânea e/ou evocada, intensa, que interfere com o sono e condiciona significativamente a qualidade de vida do doente4,11.
A localização da dor é variável, podendo atin- gir todo o hemicorpo afetado ou apenas parte deste15. Os descritores mais utilizados são quei- madura, picada, facada, aperto, formigueiro e espasmo. Grande parte dos doentes apresen- ta alterações da perceção da dor e da tempe- ratura e frequentemente existe uma mistura de
cerebral (AVC)
A DNC-AVC é um tipo de dor neuropática cró-
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R. Sousa Almeida, et al.: Dor Neuropática Central após Acidente Vascular Cerebral
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DOR